28/09/2015

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Uma hera a nascer por entre os dedos dos pés
 
 
Eu não volto à casa sombria e dos cantos mortos,
onde o branco do linho da toalha de mesa,
sobre os nossos joelhos ia morrendo dia-após-dia.
Na ausência das palavras e dos gestos, as paredes da casa
foram-se afastando de nós e o pó invadiu-nos como bruma.
Hoje, estou aqui à tua frente, a anos desse pó que se foi
acumulando nas pálpebras dos nossos olhos,
 tentando ver à transparência
de uma névoa cinzenta e antiga, um olhar que me sobressalte
ou me mate para sempre.
Mas, o que vejo - se é que consigo ainda ver coisa alguma-
é uma rosa vermelha a tentar ser uma rosa vermelha,
mergulhada numa jarra de água apodrecida.
E vejo uns braços magros, resignadamente caídos sobre
o branco da toalha de linho que nunca deixou de te morrer
sobre os joelhos. A cadeira, invadida pelo caruncho,
igualmente resignada, à eternidade das insónias e a
tantas inevitabilidades que a vida nos serve à mesa.
Já não sei para onde olhar, porque estes meus olhos,
tendem a me atraiçoar pela intensidade com que vejo
tudo o que está para além da realidade das coisas.
O abstrato confunde-nos por dentro e por fora
e paramos de respirar.
Não, eu não volto à casa sombria e dos cantos mortos.
Tu nunca de lá saístes, permaneces como dantes,
rosa vermelha a querer ser rosa vermelha,
mergulhada dentro da jarra de água apodrecida. Eu não.
Prossegui e prosseguirei pelos cantos mais vivos
da minha existência.
Não vou ficar aqui à tua frente, a ver nascer
uma hera por entre os dedos dos teus pés,
e a envolver-te
o corpo, a cadeira, a toalha de linho, a casa e o sol.
 
 
Fernando Pedrosa
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


Fotografia de Fernando Pedrosa

20/09/2015















   







É o mapa cego e generoso das mãos incógnitas e meigas,
o alento e o alimento dos homens sem chão limpo de balas.
 
 
 
Ao Povo da Síria
 
 

Fernando Pedrosa



































Fotografia de Fernando Pedrosa



                                    











                                                                                  

11/09/2015








 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
HÁ POEMAS ASSIM
 
 
 
Há poemas que nascem por entre lascas de vidro,
 
e doem quando as palavras que escolhemos,
 
se rasgam ao se cortarem nas arestas da emoção.
 
Há poemas que não se escrevem para serem lidos:
 
escrevem-se para serem pisados com os pés nus,
 
como uvas maduras pisadas nos lagares de vinho.
 
Há poemas abandonados na memória fresca do mundo,
 
morrendo desnutridos nas areias de paraísos sonhados,
 
como morrem as palavras do poeta, no lento e penoso
 
despigmentar da hemoglobina do sangue animal.
 
Há poemas que são um mistério indecifrável,
 
que estão para além das ciências da química e da biologia,
 
e são universos dentro de outros universos,
 
latejando de vida em veias de clorofila e espectros de luz.
 
Há poemas assim, vivos e naturais, que se reescrevem
 
a si mesmos, a cada ciclo solar, a cada ciclo lunar,
 
  na perpétua renovação do pó ancestral das estrelas:
 
a Divina e misteriosa Caligrafia de Deus.
 
 
Há poemas que não sabemos ler pela falta de saber olhar.
 
 
 
 
Fernando Pedrosa
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


Fotografia de Fernando Pedrosa
 
 
 
 






06/09/2015

O G R I T O

 
 
 
 
 
 









 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O GRITO
 
 
 
 
Levanta-te do teu sono interrompido...
Não temas os gritos violentos e ameaçadores,
que parecem entrar nos teus ouvidos,
como ameaça à carne, à mente e aos sentidos.
 
São as aves noturnas lá fora, perdidas nas horas,
em desvairada confusão temporal.
 
Serão mesmo elas, lá fora? Ou serás tu mesmo,
ave noturna perdida do bando,
confundindo as duas faces do mundo: o claro e o escuro.
 
Sem medo, dirige-te à janela do teu quarto.
Abre-a, e abre também os teus braços:
respira apenas, o ritmo natural que cada coisa deve ter,
respira o silêncio purificador dos velhos mosteiros,
respira o universo.
 
E, se as ameaçadoras aves noturnas não vires,
ainda assim, bate furiosamente com as palmas das mãos
no parapeito da janela, agiganta o olhar e as goelas,
e grita grita e grita ainda mais alto do que elas.
 
Agora, já nada tens a temer, os seus gritos violentos
e ameaçadores, caíram em poços fundos,
e não mais os ouvirás, nem dentro nem à superfície
dos teus ouvidos.
 
Volta para o teu sono interrompido,
para o teu quarto agora diminuído,
pelo tamanho do teu grito.
 
Lá fora, o silêncio purificador dos velhos mosteiros,
entrou pela janela aberta do quarto,
atravessou a casa, atravessou o universo...
 
 
Fernando Pedrosa
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 









                                                                                 

Fotografia de Fernando Pedrosa