07/11/2015

DONA ALICE


 
 
 
 
 

 
 
 
 
 
 

 
 
 


 

 
 
 






DONA ALICE






Com o sol morno a dar as últimas lambidelas de luz sobre as escadarias do velho casarão da quinta,
o dia morria-me nos olhos, nos  braços e nas pernas, de tanto ser tudo o que a frescura e a inocência me permitia ser: pequeno cavaleiro do sol com alma de lua cheia.

Àquela hora, os anjos de pedra que ladeavam a porta de entrada da sala grande, começavam a escurecer as asas e, eu sabia exatamente do ritual que se seguia: a criada Maria, a fazer-me entrar em casa com promessas de bolo de chocolate e dióspiros e a velha Dona Alice, sentada na sua poltrona, a olhar-me dos pés à cabeça, vestida a parecer-me a mortalha de uma rainha, cheia de folhos, laços, rendas negras, anéis em quase todos os dedos e um medalhão ao peito.
Dona Alice, abanava a cabeça e eu percebia naquele jeito de a abanar, o que me queria dizer - és sempre o mesmo, joelhos esfolados e nódoas de fruta por todo o lado. Ao mesmo tempo um ar de contentamento, pelo conforto que dava à sua alma, um rapazinho risonho e endiabrado a agitar-lhe saudosas memórias e a rejuvenescer o velho e enfadonho casarão.
Eu não era seu neto, mas era como se fosse, nunca me chamava pelo meu verdadeiro nome, chamava-me pelo nome daquele que só via uma vez em cada ano.
Com o aproximar do Natal, as noites cresciam e ficavam mais escuras e na mesma proporção, crescia-lhe no peito um rosário angustiante de dúvidas e incertezas - uma esperança ilusória nos seus olhos mortiços, a denunciarem a realidade de um outono sem uma primavera que o pudesse sustentar. Eu era o seu Miguelito, nas horas em que as saudades e a solidão ocupavam todos os espaços vazios do velho casarão. O verdadeiro "Miguelito" era o menino Miguel, tinha mais de o dobro da minha idade, vivia com a mãe na cidade de Londres e estava prestes a tornar-se num jovem piloto da aviação comercial. Os seus dois irmãos, os meninos Toninho e Papi, estudantes universitários, viviam com o pai em Lisboa. Com alguma regularidade faziam visitas à avó na quinta de Santo António, apesar dos muitos quilómetros que a separavam de Lisboa.
Dona Alice amava os seus três netos, mas o menino Miguel era o seu menino de oiro.

Maria, estás aí? Estás mais surda do que eu, já nem ouves a minha sineta a chamar-te... Valha-te Deus! Já puseste a água a ferver para a sopa? E tu, meu Miguelito, não sabes da tua tia Emília? Estou a estranhar tanta demora... Já cá devia estar com as nabiças, mas... Coitada tem sempre tanto que fazer, que não sabe por onde acudir primeiro. Esta semana ainda não me trouxe nada de correio de Londres, não tarda é Natal e eu aqui numa ansiedade que só Deus sabe...

A minha tia Emília, tomava conta dela, das três filhas e depois de terminada a escola, de mim, a não ser que, nos dias de mais trabalho, já não lhe sobrassem braços e olhos. Quando assim era, deixava-me livre para me perder pelos pinhais, pelos pomares, pelos vinhedos e pelas hortas, donde vinham aquelas sopas farfalhudas que a Dona Alice tanto gostava e, tal como eu, com o bolo de chocolate e com os dióspiros, também ficava toda lambuzada e eu perdido de riso, escondido com a cabeça debaixo da mesa, quando o caldo da sopa lhe escorria pelos cantos da boca torta e um pedaço de hortaliça se colava ao medalhão.
A tia Emília acabou por chegar, com as nabiças e sem notícias de Londres, desculpando-se com o burro Jeremias, que tinha fugido quinta abaixo, depois de uma violenta investida do Tejo, o cão que não gostava de burros.
Dona Alice, não quis saber dos ódios de estimação entre o Tejo e o Jeremias, só pensava na carta que a tia Emília não trouxera. Talvez uma greve nos correios ingleses; talvez o Miguel em final de curso, não lhe sobrasse tempo para escrever, nem lhe comprar as revistas inglesas, que lia como se estivesse a comer sopa e perdia o apetite, quando as notícias davam conta de uma tal, senhora Margareth Thatcher, que andava a cortar o leite às criancinhas da escola; talvez a carta se tivesse extraviado...
Não era expectável que o telefone tocasse, as ligações internacionais eram sempre uma complicação, as chamadas sempre a caírem e a Dona Alice aos berros, quando do outro lado já não estava ninguém. Mesmo assim, com ar de desconfiança e a resmungar baixinho, lá ia deitando o olho ao telefone...

Emília, ajuda-me a levantar desta maldita poltrona, leva-me até ao meu piano, estou triste, apetece-me tocar... Não me esperem para jantar, comam vocês e o Miguelito que durma cá, a Maria que vá avisar a mãe, a pobre mulher há-de estar em ralações... Ah se essa geringonça tocar, haja alguém que atenda e que abra bem os ouvidos, que eu cá já estou mais surda que um tamanco... Valha-me Santo António!

Estávamos a três semanas do Natal, à exceção do Miguel e da Mãe, toda a família já tinha confirmado a sua presença para a consoada, apenas as notícias de Londres tardavam em chegar. O piano não se calava, antes e após o jantar, eram tristes as melodias, sempre as mesmas e a mesma já não era a Dona Alice, quando a duas semanas do Natal, as notícias de Londres por fim chegaram: leu a carta em voz baixa e trémula e compreendeu o que havia a compreender. De Londres, viria apenas a mãe do Miguel.
Levantou-se sozinha da poltrona, amparada apenas pela bengala e dirigiu-se para a sala do piano. Tocou até se cansar, melodias ainda mais tristes e melancólicas e foi nesse tom embalada até terminar a semana.

Este piano está velho e eu mais ainda, estamos a ficar cansados um do outro... Maria, que dia é hoje? Sábado? Tens de começar a preparar as coisas com a Emília. Não tarda começam a chegar... Falta uma semana, ainda tenho esperança que possa vir... Só Deus é que sabe... Só Deus!

A meio da semana já todos os familiares tinham chegado, menos a mãe do Miguel, que chegaria na sexta-feira, um dia antes da consoada.
Dona Alice, apesar de rodeada de mimos, risos e gargalhadas, permanecia triste, ausente e calada, só o piano ainda mais cansado do que ela, lhe ia aguentando as toadas tristes que imprimia às suas teclas.
Toninho e Papi, reclamavam à avó qualquer coisa de mais alegre, mas ela dizia que não estava para aí virada.
No dia da chegada da Dona Olga, mãe do Miguel, fui até à quinta para desejar um Feliz Natal à Dona Alice e ofereci-lhe um presente feito por mim: o desenho de um rapaz alto, elegantemente vestido na sua farda de piloto ao lado do seu avião e numa das suas janelinhas, o rosto feliz de uma velhota, que eu queria que se parecesse com a Dona Alice.
Ela olhou o desenho, depois olhou para mim e novamente para o desenho e naquele momento não disse nada. Ficou com a mão esquerda a afagar-me o cabelo e com a mão direita a segurar o desenho colado ao medalhão. Fechou os olhos por uns instantes e quando os abriu, sorriu-me e, delicadamente, soltou o desenho do medalhão, que parecia ter-se apoderado dele e entregou-o à sua filha Olga, para que o guardasse na sua mesa-de-cabeceira.
Tantos tinham sido os momentos de convívio com a Dona Alice e só nesse dia eu olhara firmemente para aquele medalhão: uma moldura de ouro em forma oval, com outra moldura interna em prata que guardava o retrato em tons sépia  de um menino muito sorridente.

Eu queria muito que viesses na noite de Natal, mas o correto é estares com os teus pais e irmãos, iriam sentir a tua falta, assim como eu a vou sentir... Sempre!
Prometo-te que amanhã à noite me vou lembrar de ti e do meu Miguel e, hei-de tocar umas melodias muito alegres, assim como tu, assim como o meu piloto de aviões. Agora vai, vai meu Miguelito... Feliz Natal, também para ti! Ah depois do Natal, vem buscar o teu presente, ainda não o preparei... Não te esqueças!

Dona Alice, cumpriu o prometido, tocou melodias alegres e até cantarolou, estava radiante de felicidade, parecia ter rejuvenescido, contou histórias antigas de outros Natais e das diabruras do seu menino de oiro e das minhas que eram iguais. Toninho e Papi riam desalmadamente e pediam à avó para contar mais...
A noite já ia longa e os bocejos já eram muitos e Dona Alice gracejou que todos lhe pareciam mais velhos do que ela e arrancou uma última gargalhada coletiva.

Bom! Agora meus amores, arrumem-se pelos quartos, só não quero que ocupem o quarto do meu Miguel! O que não faz falta nesta casa são quartos vazios, queria eu tê-los sempre ocupados... Maria, não arrumes nada, deixa tudo como está! Já estás a dormir em pé, rapariga... Vai dormir! A minha Olga ajuda-me a deitar, não te preocupes... Depois também preciso ficar a sós com ela por alguns minutos... Coisas de mãe e filha.
Feliz Natal para todos e durmam na paz dos anjos! Para a caminha meus amores, já! Amo-vos a todos.

Dona Olga, após ter deixado o quarto da sua mãe, onde permaneceu algum tempo, saiu com algo nas mãos e que foi guardar na gaveta da secretária do escritório, onde a Dona Alice guardava algumas joias, cartas e documentação importante. Deu duas voltas à chave e guardou-a.
Ficara bastante apreensiva e até perturbada com o pedido da sua mãe, tal facto, fez com que voltasse ao seu quarto para se certificar que tudo estava bem. Um leve ressonar tranquilizou-a e foi-se deitar.
Na manhã do dia de Natal todos acordaram, menos a Dona Alice.









Era véspera de Ano Novo, eu não voltara à quinta, estava triste, mas confortava-me pensar, que a Dona Alice tinha partido numa longa viagem de avião, toda sorridente, a ver o mundo lá de cima e com o Miguel a pilotar. Recusava a ideia de terem sido os anjos a levarem-na para um lugar que eu sabia existir, mas preferia fingir não saber, porque os anjos nunca trazem de volta o que nos levam.
A minha prima mais velha, nesse último dia do ano, ao fim da tarde, veio até minha casa e disse-me que era muito importante que acompanhasse até à quinta, que havia alguém à minha espera e foi insistindo que era uma boa surpresa... Não! Os anjos nunca trazem de volta o que nos levam e um avião não se demora tão pouco, por tanto haver a mostrar do mundo. Pouco me importava quem me esperava, nem tão pouco o que tinha para me dizer, porque ninguém me devolveria aquelas mãos velhas, que me afagavam o cabelo com notas musicais.
Não foi o recado da minha prima que me convenceu a ir até à quinta; foram os seus olhos tristes, perdidos num ténue e inconformado sorriso.
A quinta já não era a mesma, tudo me parecia triste e desolado: o Jeremias e o Tejo, lado-a-lado, num silêncio de doer; a criada Maria, de partida para a sua longínqua aldeia transmontana; a tia Emília e as duas primas mais novas, sentadas a descascarem batatas ao som de fados tristes num velho rádio de pilhas.
Mas afinal quem era a pessoa que esperava por mim, perguntava-me a mim mesmo, olhando tudo em redor sem nada nem ninguém ver, para além da minha tia Emília e das minhas três primas.
De repente a surpresa começou a entrar-me pelos ouvidos: alguém na sala do piano tocava as melodias tristes da Dona Alice. Parei de respirar e dei a mão à minha prima mais velha, como se lhe dissesse, leva-me até lá...
A tia Emília desligou o rádio de pilhas e o som do piano tornou-se mais limpo e perceptível, fazendo abanar a cauda do Tejo e as orelhas derrubadas do Jeremias a porem-se alerta...
Deixámos a cozinha da casa dos caseiros, atravessámos o pátio da amoreiras, abrimos a cancela que dava acesso ao jardim do velho casarão e à medida que nos aproximávamos das escadarias da entrada, o som do piano acelerava-me o coração e lentamente eu ia largando a mão da minha prima, como se lhe dissesse, vou sozinho e sem medo.
A luz que vinha da porta aberta da sala grande, iluminava as asas e o rosto triste dos anjos de pedra e eu olhando-os assim, vestidos de tanta luz e tão tristes como eu já não me pareciam de pedra e comecei a pensar que, talvez os anjos não tivessem a culpa, que inocentemente eu lhes incutia; talvez a sua missão fosse muito mais humana e ampla, muito para além do que eu entendia; talvez fossem uma espécie de pastores das almas boas, guardando-as e protegendo-as de noite e de dia, onde quer que estivessem, ou para onde quer que fossem...
Entrei na sala grande e em passos lentos, fui-me dirigindo para a porta da sala do piano e ali fiquei, como que cravado ao chão com pregos de aço e os olhos espetados numas mãos esguias, muito brancas e lisas a flutuarem sobre o teclado do piano.
Quando deu pela minha presença, parou de tocar, levantou-se do banco almofadado e dirigiu-se até mim. Ele era como eu imaginava, como deveria ser um piloto de aviões: alto, sorridente, de olhar firme e elegantemente vestido.

Hei miúdo, a última vez que te vi, ainda andavas ao colo, já não te recordas, mas eu peguei-te muitas vezes... Fui para Inglaterra e nunca mais te vi... Vem, não te acanhes, temos que pôr a conversa em dia... Vamos para a sala grande, depois voltamos aqui... Sei que gostavas muito de ouvir a minha avó a tocar piano... Aprendi com ela, mal comecei a andar sentou-me logo naquele banco...

Ficámos a conversar no sofá da sala, quis saber tudo de mim e eu tudo o que ainda não sabia sobre ele: falou-me da sua infância junto da avó, do diabrete que era, do seu sonho de estudar na Inglaterra e de sonho em sonho até se tornar piloto de aviões, algo que se tinha efetivado nas vésperas de Natal, daí a sua não vinda. Lamentou-se por isso, mas foi dizendo que a vida é assim mesmo, que há coisas que não podemos prever e se assim fosse, a vida não andaria para a frente, os aviões ficariam em terra e não é em terra que eles voam.
Por breves momentos ficou calado, notei os seus olhos a desviarem-se para o retrato da sua avó em cima do aparador da sala e quando voltou a olhar para mim, percebi que estavam marejados de água. Pediu-me licença para se ausentar por alguns minutos, levantou-se do sofá e pegou numa pequena chave que estava ao lado do retrato e dirigiu-se para a porta do escritório.
Demorou-se pouco tempo, nas suas mãos trazia dois envelopes grandes e coloridos, um com o meu nome e outro com o dele. Sentou-se e deu-me o meu e uma vez mais a desviar os olhos para o retrato em cima do aparador.
Eu não suspeitava o que continha o meu envelope e muito menos o que continha o do Miguel. Ele, de mãos trémulas começou a abrir o seu e com um olhar firme, incentivou-me a fazer o mesmo. Abri-o e lá de dentro retirei algo que me era particularmente familiar: o medalhão da Dona Alice, com o retrato de um menino pequeno, que um dia sonhara ser piloto de aviões. Dentro do envelope do Miguel, estava o desenho que eu oferecera à sua avó na véspera de Natal.
Limpámos uma lágrima um ao outro e sem mais palavras, porque já não eram necessárias, voltámos para a sala do piano.
Estávamos a poucos minutos do Ano Novo, quando percebemos que alguém entrara na sala grande e quando lá chegámos já não vimos quem era, vimos apenas duas grandes tigelas de caldo-verde a fumegar e uma cesta com dióspiros muito maduros sobre a mesa.

Hei miúdo, algum anjo se lembrou de nós... Anda, traz a cesta, eu levo as tigelas, vamos para o terraço, as aldeias vizinhas já começaram a incendiar o céu com fogos-de-artifício...
Acho que vamos começar o Ano Novo todos lambuzados...



Fernando Pedrosa

























 
 Fotografia de Fernando Pedrosa