19/08/2011

O Tango

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O Tango
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Onde estarão? Pergunta a elegia
Sobre os que já não são, como se houvesse
Uma região onde o Ontem pudesse
Ser o Hoje, o Ainda, o Todavia.
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Onde estará (repito) esse selvagem
Que ergueu, em tortuosas azinhagas
De terra ou em perdidas plagas,
A seita do punhal e da coragem?
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Onde estarão aqueles que passaram,
Deixando à epopeia um episódio,
Uma fábula ao tempo, e que sem ódio,
Lucro ou paixão de amor se esfaquearam?
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Procuro-os na lenda, na apagada
Brasa que, como uma indecisa rosa,
Conserva dessa chusma valorosa
De Corrales e Balvanera um nada.
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Que escuras azinhagas ou que ermo
Do outro mundo habitará a dura
Sombra daquele que era sombra escura,
Muranã, essa faca de Palermo?
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E esse Iberra (tenham dele piedade
Os Santos) que na ponte de uma via,
Matou o irmão, Ñato, que devia
Mais mortes que ele, ficando em igualdade?
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Uma mitologia de punhais
No esquecimento aos poucos se desgasta.
E dispersou-se uma canção de gesta
Em sórdidas notícias policiais.
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Há outra brasa, outra candente rosa
Dos seus restos totais conservadores;
Aí estão os soberbos matadores
E o peso da adaga silenciosa.
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Embora a adaga hostil ou essa adaga,
O tempo, os dispersassem pelos lodos,
Hoje, p'ra além do tempo e da aziaga
Morte, no tango vivem eles todos.
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Na música prosseguem, na mensagem
Das cordas da viola trabalhosa,
Que tece na toada venturosa
A festa, a inocência da coragem.
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Vejo a roda amarela circular
Com leões e cavalos, oiço o eco
Desses tangos de Arolas e de Greco
Que vi bailar no meio da vereda,
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Num instante que emerge hoje isolado,
Sem antes nem depois, contra o olvido,
E que tem o sabor do que, perdido,
Perdido está mas foi recuperado.
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Os acordes conservam velhas cousas:
Ou a parreira ou o pátio ancestral.
(E por trás das paredes receosas
O Sul tem uma viola, um punhal.)
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O tango, essa rajada, diabrura,
Os trabalhosos anos desfia;
Feito de pó e tempo, o homem dura
Menos que a leviana melodia,
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Que é tempo somente. O tango cria
Um passado irreal, real embora.
Recordação que não pode ir-se embora
Morta na luta, algures na periferia.
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Jorge Luís Borges, in "Poemas Escolhidos"
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Trad. Ruy Belo
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À memória de António Fernandez, um ilustre [des]conhecido.
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Fts: Walter
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